5.3.11

- Caio Fernando Abreu 


"Queria tanto poder usar a palavra voragem. Poder não, não quero poder nenhum, queria saber. Saber não, não quero saber nada, queria conseguir. Conseguir também não - sem esforço, é como eu queria. Queria sentir, tão dentro, tão fundo que quando ela, a palavra, viesse à tona, desviaria da razão , evitaria o intelecto para corromper o ar com seu som perverso. A-racional, abismal. Não me basta escrevê-la - que estou escrevendo agora e sou capaz de encher pilhas de papel repetindo voragem voragem voragem voragem voragem voragem voragem sete vezes ao infinito até perder o sentido e nada mais significar - não é dessa forma que eu a desejo. Ah essa palavra de desgrenhados cabelos, enormes olhos e trêmulas mãos. Melodramática palavra, de voz rouca igual à daquelas mulheres que, como dizia john fante, só a adquirem depois de muitos conhaques e muitos cigarros. Eu quero sê-la, voragem. Espio no dicionário seu significado oficial, tentativa inútil de exorcizar o encantamento maligno. O que leio inquieta ainda mais:“aquilo que sorve ou devora”. E vejo um redemoinho lamacento de areias movediças à superfície do qual uma única mão se crispa. Vórtice, penso, numa vertigem. Repito, hipnotizado: vertigem, vórtice, voragem. “qualquer abismo” - continuo a ler. Os abismos de rosas, os abismos de urzes, e aqueles abismos à beira do qual duas crianças correm perigo, protegidas pelas asas do anjo da guarda. Os abismos de estrelas falsas no falso céu do teto do meu quarto, os abismos de beijos e desejos, o abismo onde se detém o rei daquela história zen para abrir o anel que lhe deu o monge, onde está guardado o condão capaz de salvá-lo - e o condão é a frase: “isto também passará”. Sim, leio então: “tudo que subverte ou consome”-paixões, ideologias, ódios, feitiçarias, vocações, ilusões, morte e vida. essas outras palavras de maiúsculas implícitas -vorazes, voragem -, abismais.” 

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